Por Lilia Diniz em 26/8/2009
Política e religião, em separado, já despertam a paixão de milhões de brasileiros. Quando se acrescenta a capacidade disseminadora da imprensa, a combinação pode colocar em risco as estruturas da sociedade. O programa Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (25/08) discutiu as ligações entre meios de comunicação, igrejas e a esfera política no Brasil. Desta vez, o ponto de partida deste tema, já tratado pelo programa em inúmeras edições, foi uma investigação do Ministério Público de São Paulo que resultou em uma denúncia acolhida pela 9ª Vara Criminal de São Paulo. Edir Macedo e outros nove integrantes da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) são acusados de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.
Segundo o MP, a seita envia o dinheiro arrecadado com as doações dos fiéis para paraísos fiscais e depois aplica os recursos em empresas privadas no Brasil e em canais de televisão, com a Record. A denúncia foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação e logo se instalou uma guerra midiática entre a redes Record e Globo. Acuada, a Iurd tratou de criticar o acordo entre o governo brasileiro e a Santa Sé, firmado em 25/11/08 e que confere status jurídico para a Igreja Católica no Brasil. A concordata prevê o ensino religioso optativo, isenção fiscal a manutenção de patrimônios da Igreja com recursos do Estado, entre outros pontos polêmicos.
No estúdio do Rio de Janeiro, a convidada foi a jornalista Elvira Lobato, repórter especial da Folha de S.Paulo, com mais de 35 anos de experiência. Lobato é especialista na área de Comunicação de Radiodifusão. Em São Paulo, o Observatório recebeu Roseli Fischmann, doutora em Filosofia e História pela Universidade de São Paulo (USP), que estuda questões étnicas, raciais e religiosas, e Roberto Livianu, promotor de Justiça criminal de São Paulo, que está no MP desde 1992.
O médico e o monstro
Antes do debate ao vivo, na coluna "A Mídia na Semana", Dines comentou fatos de destaque dos últimos dias: o fato de mulheres que acusam o conceituado médico Roger Abdelmassih, especialista em reprodução assistida, de abuso sexual não terem procurado a imprensa; o pouco destaque dos títulos conquistados por esportes como o vôlei - que acaba de ganhar mais um Grand Prix - na mídia; e a notícia de que o cantor Michael Jackson morreu de overdose de medicamentos. "As legiões de fãs em todo o mundo não se importam com tantas falsificações, mas deveriam lembrar-se que dançarinos como Fred Astaire e Gene Kelly, cantores como Frank Sinatra e Ella Fitzgerald, os Beatles e Rolling Stones, foram maravilhosos artistas, alguns ainda vivos e se exibindo sem recorrer a operações, injeções e transformismos", disse.
No editorial que precede o debate ao vivo, Dines comentou o acordo firmado entre o Brasil e a Santa Sé e disse que é perigoso e anticonstitucional porque "o Estado brasileiro é secular, laico e a mídia não pode ser cúmplice deste pacto de silêncio". O jornalista considera que "os mundos político e midiático estão preocupados com o temor de uma guerra que vai além da competição comercial entre as redes de TV". Para Dines, a manutenção do laicismo é uma questão política. "Diz respeito ao Estado democrático e isonômico, pertence à esfera Legislativa. Embora a questão dos símbolos religiosos em prédios públicos agora levantada tenha que ser resolvida na esfera Jurídica. Resta perguntar como ficarão os abusos nas concessões de rádio e TV a grupos religiosos. Serão corrigidos pela Câmara Federal ou vetados pelo Ministério das Comunicações?", questionou.
A reportagem exibida pelo programa mostrou a opinião de Carlos Eduardo Lins da Silva, ombudsman da Folha de S.Paulo. O jornalista destacou que emissoras de rádio e televisão são monopólio do Estado brasileiro, que é laico. Segundo ele, é "complicado" ceder uma concessão de radiodifusão a uma denominação religiosa. Além de explorar o veículo para o "proselitismo religioso", há o risco de a emissora virar fonte de receita monetária e ser usada com fins político-partidários. Carlos Eduardo argumentou que o jornalismo deve ser laico e defender os interesses de todos, independentemente do credo. "Os assuntos religiosos devem ser tratados com muita cautela, moderação e conhecimento. É o que falta, ao meu ver, muitas vezes ao jornalismo", criticou, complementando que a confluência entre meios de comunicação, religião e política é perigosa para o futuro da sociedade.
Processos em avalanche
No início do debate ao vivo, Dines pediu para Elvira Lobato comentar a avalanche de processos que sofreu por conta da reportagem especial "Universal chega aos 30 anos com império empresarial". O levantamento, que sintetizava anos de pesquisas sobre as empresas de rádio e TV da Iurd, foi publicado pela Folha de S.Paulo em dezembro de 2007. "Eu fui surpreendida em janeiro do ano seguinte com as ações. Foram chegando uma, dez, quinze, trinta. Uma coisa que a gente nunca tinha visto. Todas de lugares remotos, não tinha nenhuma de capital. Há ações, geralmente, em locais onde a Folha não circula", enfatizou.
Lobato contou que as ações seguiam um modelo. Muitas tinham a mesma redação e frases iguais, o que mostra que a enxurrada de ações foi orquestrada pela Iurd. A jornalista acredita que o objetivo era intimidar e calar a imprensa. "Impõe um custo financeiro altíssimo para o jornal e um custo emocional altíssimo para mim. Eu fiquei praticamente um ano fora desta cobertura porque tinha que estar presente nas ações e, depois, até pelo desdobramento. Eu fiquei muito abalada. Ninguém que sofre mais de cem ações simultâneas reage com frieza a isto", disse.
Roberto Livianu chamou a atenção para o fato de que a maioria das pessoas não sabe que os canais de rádio e TV são concessões públicas, os cidadãos têm a percepção de que são bens privados de determinados grupos. "Não se tem clareza de que se tratada de serviço público, objeto de concessão, e que como todo serviço público é necessário que cumpra certas finalidades, objetivos, voltados para o interesse de todos", explicou. O promotor questionou se a programação de emissoras que fazem proselitismo religioso causa constrangimento a adeptos de outras confissões ou a ateus. Para Livianu, o debate em torno do tema ainda não está "amadurecido". Não há a consciência de que este é um tema inerente à democracia.
Concordata escondida
A pouca cobertura do tratado entre a Santa Sé e o governo brasileiro foi discutida no Observatório. Roseli Fischmann lamentou que o tema só tivesse voltado a ser debatido como conseqüência dos ataques contra a Iurd. Fischmann disse que é preciso refletir não só sobre os canais que pertencem a denominações religiosas, mas também a respeito da "influência profunda" de determinados grupos religiosos em outros canais. "Muitas vezes é explícito, mas em outras situações não é. E o que não é explícito é igualmente importante. Aquele pacto de silêncio (sobre o acordo) não aconteceu à toa", advertiu. É necessário que haja uma grande discussão para criar parâmetros. "Eu não vejo outro caminho que não seja a própria democracia, com todas as suas vicissitudes", avaliou.
Outra denominação que esteve envolvida em escândalos foi a Renascer em Cristo. Em 2008, nos Estados Unidos, seus líderes foram acusados de evasão de divisas. Dines perguntou a Elvira Lobato como ficou a questão das concessões de radiodifusão ao grupo religioso após a série de denúncias. Lobato explicou que a Renascer disputou várias licitações para canais de radiodifusão nos anos 90 através de empresas que estavam em nomes de bispos, pastores e parentes ligados à cúpula da seita. O ministério das Comunicações chegou a anunciar a suspensão de tramitação de pedidos de concessão de empresas ligadas a dirigentes da Renascer, mas os processos não foram paralisados. Para cassar ou negar uma concessão é necessária grande maioria na Câmara e no Senado, é um processo complexo.
Lei de responsabilidade religiosa
Um telespectador perguntou a Livianu se poderia ser criada uma "lei de responsabilidade religiosa" nos moldes da Lei de Responsabilidade Fiscal. O promotor explicou que há instrumentos na Lei que promovem a reparação necessária. "Quem, através de condutas, produz prejuízo a quem quer que seja, responde nos termos da Lei. O Código de Processo Civil tem os instrumentos para que as pessoas que se sintam lesadas por atos concretos tenham os mecanismos para obter os ressarcimentos necessários. Eu acho que o que precisamos é de uma lei que regule a questão comunicação eletrônica de massa", argumentou. Para o promotor, a lei atual é anacrônica. Outro ponto criticado foi a paralisação do Conselho de Comunicação Social do Senado Federal, que está inativo desde 2007.
Elvira Lobato levantou a questão da responsabilização por possíveis excessos cometidos por canais de radiodifusão. As concessões não são registradas em nome dos grupos religiosos, mas sim em nome de pessoas físicas, fundações ou empresas, que têm acionistas. Neste caso, como exigir uma reparação se é difícil estabelecer a ligação formal? "A Rede Record sempre disse que ela não pertence à Igreja Universal, que pertence a pessoas físicas", comentou.
O promotor explicou que o artigo 222 da Constituição Federal, que regula os meios de comunicação, não fixa restrição de titularidade de canais de televisão por igrejas. De acordo com a Carta Magna, podem ser titulares de emissoras pessoas naturais ou pessoas jurídicas constituídas há mais de dez anos. "Na verdade, em tese, não feriria a Lei que uma determinada religião postulasse uma concessão. Eu diria que isto não é recomendável, mas não fere a Constituição". Deve-se fiscalizar o conteúdo dos canais para ver se o interesse público está sendo respeitado.
A partir da observação dos comentários do chat do programa, Dines destacou que os telespectadores "não estão muito interessados no laicismo", preferem a briga entre a Globo e a Record. Elvira Lobato disse que a preocupa que as denúncias do ministério público acabem obscurecidas pela questão da disputa comercial entre as emissoras. "Na minha avaliação, o que tem que ser olhado é o que o Ministério Público apurou. Não desviar o foco para não mascarar a essência da questão", disse.
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A concordata e a questão das concessões
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 517, exibido em 25/08/2009
Há exatos nove meses, em 25 de novembro passado, este Observatório revelou um pacto da grande imprensa com o governo para esconder um tratado - ou concordata - entre o Estado brasileiro e a Santa Sé. Lembramos na ocasião que esta era uma atitude perigosa e anticonstitucional, porque o Estado brasileiro é secular, laico e a mídia não pode ser cúmplice deste pacto de silêncio.
A mídia fingiu que não era com ela. Hoje os mundos político e midiático estão preocupados com o temor de uma guerra que vai além da competição comercial entre as redes de TV.
O pacto de silêncio rompeu-se a partir do momento em que um juiz de São Paulo acolheu a denúncia do Ministério Público contra dez altos dirigentes da Igreja Universal, inclusive seu expoente maior, o bispo Edir Macedo, acusado de evasão fiscal e lavagem de dinheiro.
A grande imprensa com a Globo à frente passou a atacar o complexo religioso-político-empresarial do bispo Macedo enquanto evangélicos e outras denominações luteranas voltaram-se contra a concordata com o Vaticano.
Fiéis não têm culpa
A questão tem desdobramentos que não podem ser esquecidos. Os oito milhões de fiéis da Igreja Universal não têm culpa pelas supostas trapalhadas dos seus dirigentes. Outro dado que não pode ser esquecido é que as emissoras de rádio e TV compradas com os dízimos dos evangélicos usam concessões públicas. Em outras palavras: o Estado brasileiro avalizou estas operações.
Mas se o Estado brasileiro é laico e não pode estar atrelado a qualquer credo religioso fica evidente que também são ilegítimas as concessões de rádio e TV à Igreja Católica.
A manutenção estrita do laicismo é uma questão política, diz respeito ao Estado democrático e isonômico, pertence à esfera Legislativa. Embora a questão dos símbolos religiosos em prédios públicos agora levantada tenha que ser resolvida na esfera Jurídica.
Resta perguntar como ficarão os abusos nas concessões de rádio e TV a grupos religiosos. Serão corrigidos pela Câmara Federal ou vetados pelo ninistério das Comunicações?
Fonte: www.observatoriodaimprensa.com.br
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